Tuesday, August 09, 2005

O SER LONDRINO

Sexta-feira 22 de Julho. Havia duas semanas que este fim-de-semana em Londres estava combinado, de contrário, a réplica falhada dos atentados de sete de Julho a que a cidade escapara na Quinta-feira 21, ter-me-ia feito reconsiderar.
Com a viagem comprada, nem mesmo a (ainda confusa) notícia, nessa manhã, de que um brasileiro havia sido alvejado pela polícia na estação de Stockwell, alterou a viagem.
Assim, chegado à estação de Victoria apanhei o 38 até Convent Garden, onde um amigo me esperava, e enquanto me incomodava com os olhares furtivos lançados à minha mochila, apercebia-me da atenção que dedicava às dos outros – ou, de resto, a qualquer indício suspeito naquela gente do autocarro.
Provavelmente, todos eles tinham uma estória recente para contar: uma evacuação da estação de metro causada por uma mala abandonada na carruagem; ou de um cinema, porque alguém de ar suspeito saíra da sala antes do fim do espectáculo deixando uma mochila debaixo da cadeira - ou ainda de um prédio de escritórios depois de um telefonema anónimo.
Também o meu amigo tinha a sua estória, e enquanto me mostrava fotos tiradas com o telemóvel durante uma ameaça de bomba junto do seu escritório, nessa semana, comentava sem dramatizar: “Assim se vive agora em Londres”.
Nessa noite, enquanto milhares povoavam o Soho, as salas da West End, Covent Garden, os pequenos Pubs e os monumentais Clubs, dois carros armadilhados explodiam no Egipto, contribuindo para o clima de tensão em que as pessoas já vivem.
E assim começou Sábado; com mais este atentado, depois, com a revelação da identidade do brasileiro morto em Stockwell, e ainda, com a descoberta de uma mochila contendo um engenho explosivo no West London Park. “Assim se vive agora em Londres”, lembrava-me, sem, contudo, conhecer ainda a extensão desse “assim”.
Normalmente, contar que nessa noite fui a uma das incontáveis festas que os londrinos organizam nos seus quintais (Garden Parties), seria irrelevante, mas o facto é que tudo mudou a partir do momento em que transpus a porta da rua, atravessei uma casa e saí para o quintal - como se as traseiras dessa casa fossem, na verdade, uma outra dimensão.
Não era apenas o ambiente místico criado pelas lanternas chinesas penduradas em rede por todo o lado, ou o facto de este quintal estar unido com os vizinhos por caminhos labirínticos, cheios de árvores centenárias escondendo enigmáticas esculturas. Era a predisposição das pessoas, a forma como pareciam querer aproveitar cada segundo daquele encontro como se fosse mágico.
Havia mais de cem pessoas de todo o tipo de etnias imagináveis (de resto, Londres é a menos inglesa cidade do Reino Unido, em termos de população), convivendo, conhecendo-se, falando com os estranhos que, lá fora, nunca ousariam abordar. Talvez alguma daquelas pessoas estivesse no 38 que eu apanhei à chegada, e talvez nos tenhamos lançado mútuos olhares analíticos, então; mas agora, se os olhares se cruzassem, nada menos que um sorriso poderia daí advir.
Ainda assim, entre uma iguaria vegetariana, um trago de vinho e dois dedos de conversa, os olhos lá se iam escapando para o céu, onde os helicópteros descreviam uma densa teia de rotas cruzadas.
Nesses breves instantes, diferentes rostos comungavam uma similar expressão de inquietude: os Islâmicos temendo uma iminente onda de discriminação; os ingleses curando feridas e ameaças infligidas no seu próprio território, e os imigrantes em geral remoendo na memória o brasileiro que a polícia alvejou por engano. Oito vezes.
“Assim se vive agora em Londres”, pensei então. “Assim” é ser londrino “agora” - aproveitando o melhor de momentos como este, e evoluindo deste novo receio partilhado para uma efémera cumplicidade.
Compreendi a frase do meu amigo quando me ocorreu que, nesse Domingo, podia voltar a ver uma daquelas pessoas no 38 de regresso a Victoria, e que, para que a cumplicidade desaparecesse tomando a apreensão o seu lugar, talvez bastasse que a tal pessoa levasse uma mochila às costas.
Como eu.